A foto mais famosa de Che Guevara, que se tornou uma das imagens mais reconhecíveis do mundo, tem uma história curiosa. Conhecida como “Guerrilheiro heroico”, a foto é de autoria do fotógrafo cubano Alberto Diaz “Korda” (1928-2001). Em março de 1960, Korda cobria para o desaparecido jornal “La Revolución” o funeral para as cem vítimas da explosão do cargueiro “La Coubre”, que aportara em Havana vindo da Bélgica com 76 toneladas de armas e munições para o exército cubano. Na cerimônia, Che Guevara estava atrás de Fidel Castro e de outras lideranças cubanas numa tribuna improvisada. Korda, que fotografava Fidel com uma câmera Leica e lente de 90 mm, viu o Che apenas por um minuto e meio e se impressionou com seu olhar: “Eu estava fotografando as pessoas presentes na tribuna quando, de repente, vi o Che com esse olhar fixo no infinito, essa expressão decidida. E pensei comigo, ‘será um ótimo retrato de sua personalidade’”.
O fotógrafo, que sempre se lembraria desse momento como “um instante de sorte”, teve tempo apenas para duas fotos, uma horizontal e outra vertical. Ao revelar suas fotos, descartou a segunda, porque atrás do ombro do Che aparecia uma cabeça. A primeira foto, na horizontal, tinha, à esquerda, o perfil de um homem e, à direita, uma palmeira. Alberto Korda editou a foto para isolar o guerrilheiro desses outros elementos. Foi esse recorte que fez a fama da imagem. Como escreveu John Lee Anderson em sua biografia de Che Guevara (Che Guevara: A Revolutionary Life, New York, 1997, p. 465): “O Che aparece [nessa foto] como o ícone revolucionário sem igual, com um olhar desafiante que examina o futuro, seu rosto é a encarnação viril da indignação perante a injustiça social”. No entanto, a foto não foi escolhida pelo jornal para sua publicação no dia seguinte. O retrato permaneceu no estúdio de Korda até que, em 1967, o editor e ativista italiano Giangiacomo Feltrinelli pediu ao fotógrafo uma foto que ilustrasse o livro que planejava publicar com o diário de Che na Bolívia. Alberto Korda sugeriu aquela foto sem cobrar por ela qualquer direito autoral. Feltrinelli, então, usou a foto em um cartaz que vendeu milhões de cópias em seis meses, tornando-a o ícone que conhecemos.
A história dessa foto ilustra dois aspectos que têm me inspirado na arte da fotografia: o momento mágico e o recorte justo. Um dos motivos pelos quais achava atraente a câmera de um smartfone e pelo qual continuo a privilegiar uma câmera compacta como a que agora utilizo é a possibilidade de estar preparado para esses momentos em que nos deparamos com o nosso “instante de sorte”. Mas mesmo quando capturamos esse momento mágico, o recorte posterior não é menos importante para que a fotografia tenha o impacto que pretendemos.
Pensei muito sobre a história da foto de Alberto Korda quando fotografei a minha “Woking Class Hero”, uma das fotos de um projeto recente sobre trabalhadores da cidade de São Paulo. A foto foi feita na Avenida Paulista, quando, por acaso, trabalhadores de uma concessionária de telefonia faziam reparos na fiação. Um dos trabalhadores carregava uma escada imensa no ombro sem dificuldades. Não pude deixar de pensar nessa proeza que passa despercebida aos passantes, na obra diária de tantos trabalhadores que constroem e mantêm nossa cidade, heróis anônimos das metrópoles. Foi o tempo de retirar minha Canon Powershot, ajustar o foco e fotografá-lo antes que ele instalasse a escada no ponto de trabalho seguinte. Em casa, porém, percebi que meu formato preferido para fotografias, o 4:3, não seria o melhor. As linhas formadas pelos prédios da Paulista, pela escada e pela sombra por ela formada ao sol a pino ficavam melhores no formato menos usual de 9:16.
Esquecemos muitas vezes que a fotografia é sempre, em maior ou menor medida, uma manipulação da realidade observada. É sempre um recorte definido pelo olhar do fotógrafo com o objetivo de expressar um sentimento, uma ideia, uma impressão. Há muitas formas de manipulação (de cores, tonal, com luz artificial). O recorte é apenas uma delas e não menos legítima. Mas nenhum recorte “salva” uma foto. Para mim o que conta mesmo ainda é aquele instante de sorte, o momento mágico, como o um minuto e meio em que Alberto Korda esteve diante de Che Guevara para em dois cliques fazer a que talvez seja a foto mais famosa de todo o século XX.
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